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Brasil e Alemanha no Caleidoscópio

 

Paulo Wenderson Teixeira Moraes

12/11/2017

Na fronteira entre a Alemanha e a Áustria, começo a pensar no quanto um país tem que amadurecer antes de conquistar um patamar de desenvolvimento social e econômico. A névoa vem e vai, se dissipando por alguns minutos, deixando a paisagem ser capturada aos poucos. 

Da Áustria, eu tento olhar para a Alemanha de cabeça para baixo, para o passado, e começo a ver similaridades com o que acontece atualmente no Brasil.

Vou mais alto para ter uma visão privilegiada. De lá de cima dá para ver as casinhas e fazendas bem organizadas nos campos verdejantes. Estou há mais de 2000 metros de altitude, nas montanhas.

Tem uma luneta gigante cujas lentes misturam passado, presente e futuro.

Faz frio. Mesmo assim, tiro a camisa, entro em padmāsana. Em meditação, um insight surge na tela mental, trazendo um paralelo entre dois países. A elite que estava no topo debatendo-se para manter o poder germânico pode ser comparada com a elite política brasileira que também está em agonia.

 Mas o caminho ainda é tortuoso. Há um vale e as montanhas. Uma parede a ser vencida.

 Me equilibro no topo. A esperança ainda pulsa. As raízes da árvore se fixam à rocha. Fecho os olhos novamente.

Em silêncio escuto o futuro e o corvo se deixa fotografar. Sua serenidade lembra a sabedoria do sociólogo que fornece explicações plausíveis, oferecendo(-se) generosamente as linhas para traçar paralelos de mais de 500 anos.

Há um caminho para o desenvolvimento através do controle de nossas elites? Poderia também acontecer no Brasil? Estamos sofrendo com a humilhação que o cidadão brasileiro passa todos os dias. A dor do rompimento com uma autoimagem grandiosa pode ser o primeiro passo para um novo caminho. Por enquanto, temos as palavras do sociólogo:
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É somente à luz de reflexões como essas que se torna acessível o pleno significado que a história da auto-imagem de uma nação tem para a história da auto-imagem de seus membros individuais. Assim como as condições nacionais são uma das fontes de significado e realização nas vidas dos indivíduos, elas também podem contribuir para o sentimento de que valor e significado estão ameaçados ou perdidos. 
A Alemanha oferece um exemplo do curioso relacionamento em que, dado o mundo tal como ele é, a perda de poder leva à perda de significado e valor. Mas a conexão não está restrita a um país específico. Ela pode ser observada em muitas outras nações — e não só em nações ameaçadas com uma perda de poder, grupos dominantes de todas as épocas sofrem aos olhos de seus membros uma correspondente perda de significação e valor. Inúmeros exemplos mostram que grupos dominantes de todo o tipo — tribos, elites, classes ou nações — cujo poder está declinando, raramente deixam vago o terreno sem luta, mesmo que as probabilidades de manutenção de seu poder e domínio sejam nulas. Quanto mais fracos estão, mais insegura e ameaçada está, de fato, a sua superioridade, e mais estúpidas, imprudentes e irrealistas são, por via de regra, provavelmente, as medidas com que procuram preservar sua posição.
Há uma idéia muito difundida de que os membros de grupos sociais em declínio agarram-se com unhas e dentes ao poder e com freqüência lutam por ele até o último minuto, principalmente porque não desejam renunciar às vantagens "materiais" que ele lhes proporciona — por exemplo, um nível mais elevado de consumo ou as oportunidades de serviços físicos prestados por seus subordinados. E a perda de tais vantagens desempenha, sem dúvida, um papel nos temores e visões de um futuro desagradável que os leva a lutar; usam freqüentemente meios cada vez mais cruéis e mais desesperados, embora desenvolvimentos além de seu controle possam estar fazendo, de um modo visível, com que a balança do poder se incline contra eles. Mas a explicação de tal comportamento em termos "materiais" ou, como é freqüentemente expresso, "econômicos", nunca é mais que uma explicação parcial.
À parte tudo o mais que possa significar, uma perda ameaçada de poder está invariavelmente associada, pelos membros de formações dominantes, a uma séria perturbação de sua auto-imagem e, com bastante freqüência, à completa destruição daquilo que, a seus próprios olhos, confere significado e valor a suas vidas; ameaça-os, simultaneamente, com a perda de sua identidade — uma perda do eu. E, acima de tudo isso, a ameaça ao que sentem ser sua identidade, seu valor e status social, torna impossível para eles enxergarem sua situação tal como é, e adaptarem sua identidade, suas metas e o sentimento que nutrem de seu próprio significado e valor às novas circunstâncias. Quase invariavelmente, são derrotados não apenas pelo maior poder físico ou social de seus adversários em ascensão, mas ainda mais
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por seu próprio sentimento de que já não vale a pena viver a vida se a antiga ordem em que desfrutavam de supremacia desaparecer. Sem os atributos de sua superioridade social, a vida parece-lhes vazia de valor e significado. Se em tal situação grupos inteiros de pessoas resistem à mudança até o fim, se estão preparados, a fim de preservar sua supremacia, para lutar e sacrificar a própria vida, não é apenas porque temem uma existência sem os confortos materiais a que estão acostumados: não é, em primeiro lugar, porque a perda de seus meios de subsistência ou de seus luxos esteja ameaçada, mas por causa da ameaça ao seu modo de vida como um todo. O que está ameaçado, sobretudo, é seu amor-próprio, seu orgulho.
Talvez exista hoje uma tendência para subestimar um pouco o significado que muitas coisas, incluindo coisas de um tipo "material" ou "econômico", podem ter para as pessoas pelo fato de servirem como símbolos de seu orgulho, de sua auto-estima e do status superior que quase todo o adulto e quase todos os grupos humanos na Terra reivindicam em relação a alguém ou a outrem. É através da exploração de tais conexões que, mais cedo ou mais tarde, a chave será encontrada para os muitos problemas que a curiosa relação entre perda de poder e perda de significado e valor continua apresentando. Os membros de formações sociais mais poderosas estão dispostos a lutar quando o seu poder lhes está escapando e, com freqüência, em tais circunstâncias, nenhum meio é bastante violento ou bárbaro para eles, porque seu poder e a imagem que fazem de si mesmos como uma grande e esplêndida formação tem para eles um valor superior ao de suas vidas. E quanto mais fracos, inseguros e desesperados ficam na estrada que os leva ao seu declínio, quanto mais se avoluma neles o sentimento de que estão lutando por sua supremacia com as costas contra o muro, mais selvático se torna, geralmente, o seu comportamento e mais agudo o perigo de que desprezem e destruam os padrões civilizados de conduta de que se orgulhavam. Isso porque, independentemente de quaisquer outras funções a que possam servir, os padrões civilizados de conduta só são significativos, com freqüência, para os grupos dominantes, enquanto permanecerem como símbolos e instrumentos de seu poder. Por conseguinte, elites no poder, classes dominantes ou nações lutam muitas vezes em nome de seu valor superior, de sua civilização superior, com meios que são diametralmente opostos aos valores que pretendem defender. Com as costas contra a parede, os campeões tornam-se facilmente os maiores destruidores de civilização. Tendem facilmente a converter-se em bárbaros.
Assim, somente no caso de se incluir a importância conferida ao valor e
significado do poder e da superioridade de status no diagnóstico de declínio social é que se pode avaliar as dificuldades que" estão ligadas à adaptação a um status inferior. Tal adaptação é bastante difícil no caso de indivíduos. No caso de poderosas formações sociais — se é que sobrevivem — ela é tão difícil que se tem por quase impossível consegui-la em uma só geração. Normalmente, são necessárias, pelo menos, três ou mais gerações antes que uma nação poderosa (ou algum outro agrupamento social outrora poderoso) que sobreviva a tal perda de poder seja capaz de reconhecer claramente seu status inferior e de o aceitar emocionalmente; antes que a imagem do maior passado deixe de pairar diante dá geração 
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presente como medida e desafio; e antes que esta última tenha desenvolvido uma nova imagem da nação como uma unidade social que oferece a seus membros uma fonte de orgulho e amor-próprio, e na qual estão aptos, apesar de tudo, a encontrar tarefas significativas para o futuro e metas pelas quais vale a pena viver. 
Os efeitos imediatos de tal declínio, de uma tal perda de poder e status, são usualmente sentimentos de desalento e desilusão. Podem passar a predominar os sentimentos de falta de méritos, de imprestabilidade e de ausência de objetivos na vida, intercalados com tendências para o cinismo, o niilismo e o egocentrismo. Por estranho que isso possa parecer, encontramos os mesmos efeitos em pessoas que perderam suas crenças ou cujos ideais foram destroçados pela realidade. Lembram os sentimentos e atitudes associados ao luto por um amor perdido, e têm muito em comum com os processos que os médicos, em seus diagnósticos de indivíduos, classificam como "regressões".
Se um processo de declínio ocorre lentamente, se a luta para detê-lo se prolonga por várias gerações e permanece indecisa por muito tempo, se ocasionais melhorias e recuperações, de tempos em tempos, reacendem as esperanças de restauração da antiga glória, se, em resumo, o declínio nunca vai tão longe que as pessoas tenham de enfrentá-lo, então as ambigüidades do status de uma nação e os sintomas de uma insegurança maciça em torno do status podem penetrar fundo no caráter de seus membros e impregnar toda a sua tradição de crenças e conduta. Foi precisamente isso o que aconteceu no caso do desenvolvimento da Alemanha. Como foi dito, a nossa própria época oferece muitos exemplos de nações que — muitas vezes de uma forma um tanto súbita e inesperada para elas — se defrontam com a perda de poder e status e são, em conseqüência, compelidas a adaptar seus ideais nacionais, sua auto-imagem, seu orgulho e seu amor-próprio à perda de seu papel imperial. A adaptação da Alemanha à perda do seu papel imperial depois de 1918 foi especialmente complexa, porque envolveu uma continuação do processo traumático de declínio que já se iniciara bem lá atrás na Idade Média. No espectro de diferentes casos que mostram a conexão entre experiências de perda de poder e de perda de significado e valor, o padrão de declínio da Alemanha foi curioso e talvez único. E o caso de lento declínio ao longo dos séculos, com muitos altos e baixos, que nunca atingiu um ponto suficientemente baixo para dissipar os impulsos imperiais, tornando-os obsoletos e obrigando uma adaptação final entre os alemães a seu status inferior, bem como o início de uma reorientação da auto-imagem e dos ideais nacionais alemães.
O que está aqui em discussão, a tentativa de extermínio dos judeus pelos
nacional-socialistas, é apenas um episódio na ascensão e queda de povos. Mas, em muitos aspectos, possui uma significação paradigmática. Mostra o que os líderes de uma nação civilizada são capazes de fazer em sua luta pela restauração ou preservação de seu papel imperial, quando uma crônica sensação de declínio, de estar cercado de inimigos e encurralado num canto, desperta a convicção de que só uma crueldade implacável pode salvar seu poder e glória de uma gradual e inexorável decadência. Também deixa claro a que extremos de comportamento as pessoas podem ser levadas pela exclusividade de um sistema de crença nacional contra 
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aqueles a quem tratam como "estrangeiros", como outsiders, membros de um grupo diferente e potencialmente hostil. 
O grau de crueldade e barbarismo a que chegaram os líderes da nação alemã nessa ocasião correspondeu à força das ameaças que eles viam estar se avizinhando cada vez mais e pondo em perigo suas esperanças e aspirações para a Alemanha. Pois o amor à pátria que proclamavam, e em nome do qual reuniram vastas seções da população alemã à sua volta, não era amor pela Alemanha como ela era. Não era amor pela Alemanha como uma entre numerosas nações em pé de igualdade e, certamente, não por uma Alemanha como potência de segunda ou terceira classe. Era amor por uma Alemanha como devia ser de acordo com seus sentimentos, por uma Alemanha que era maior do que outras nações européias e, de um modo específico, maior do que todas as nações do mundo. Era amor por um ideal, não por uma Alemanha real.
Os esforços dos líderes nazistas e, em sua esteira, de vastos setores do povo alemão visaram a plena realização dessa auto-imagem; eram demasiadamente monstruosos, desesperados e implacáveis, pois, em comparação com a "grande império alemão", que eles estavam empenhados em realizar e com os potenciais de poder de todas as outras nações que teriam de ser combatidas e subjugadas para realizá-lo, os recursos da Alemanha real já se tinham tornado muito reduzidos. A distância entre o ideal nacional alemão e a identidade nacional alemã era grande e estava aumentando. O próprio Hitler considerou a sua própria época o derradeiro momento histórico em que ainda restava uma esperança para a Alemanha recuperar seu papel imperial e o mundo ingressar numa era quiliástica de um "Reich milenar" alemão. Para se atingir esse objetivo, como ele repetidamente afirmou, seria requerida uma total mobilização dos recursos alemães, uma guerra total sem olhar as perdas, uma luta completamente implacável e inescrupulosa, incluindo o extermínio maciço de grupos hostis, "racialmente inferiores". Se os alemães fossem incapazes de restabelecer o maior império que pensavam ter perdido, então, aos olhos de Hitler, também poderiam, merecidamente, afundar para sempre. Ele tampouco tinha amor pela Alemanha tal com realmente era; o que ele amava era a afta morgada da Alemanha e sua própria grandeza. A guerra nacional-socialista e, como parte dela, toda a monstruosidade desses anos, era o desesperado lance de uma nação que, em relação a outras e mais poderosas nações, estava rapidamente caindo para o status de segunda ou terceira classe. Foi empreendida como urna última tentativa de viver de acordo com a imagem ideal que a Alemanha nutria de si mesma como potência mundial de primeira grandeza.
Poder-se-ia pensar, sem dúvida, que os alemães podiam ter aprendido a viver com uma imagem menos exaltada de si mesmos, sem o assassinato de milhões de judeus. Mas só em raros casos, quando outros estão ficando mais fortes e eles cada vez mais fracos, as formações sociais poderosas se submetem pacificamente a urna redução de seu poder, a uma diminuição de seus status social e, portanto, a uma mudança em sua auto-imagem, seu "nós-ideal", sua identidade — simplesmente com base num vislumbre, claro e intuitivo, do fato de que a maré do desenvolvimento está correndo contra eles. Mesmo se, para observadores de fora e talvez para
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uns poucos indivíduos e grupos de dentro da própria unidade em declínio, o
diagnóstico sociológico é bastante claro, por via de regra a esmagadora maioria dos afetados permanece incapaz de perceber fatos que feririam profundamente sua auto-estima e seu orgulho. Em tais circunstâncias, voltam-se repetidamente para líderes que erguem diante deles a imagem de sua superior grandeza, que se valem deles em nome de seus valores superiores e os conclamam a resistir à ameaça, a lutar por sua superioridade coletiva e pelos ideais que a acompanham. Em tais momentos, a cegueira dos que estão dentro, a incapacidade de perceberem o que não se deseja perceber, o reforço mútuo de uma crença que — também contrária à realidade da situação — corresponde às esperanças e desejos comuns correntes na sua sociedade, explodem com toda a sua violência e fúria. Como animais ferozes, nações poderosas ou outras poderosas formações sociais tornam-se perigosas ao máximo quando se sentem acossadas — quando farejam que o equilíbrio de forças lhes está sendo desfavorável, que os recursos de poder de rivais e inimigos potenciais estão ficando maiores que os deles, que seus valores estão ameaçados e sua superioridade dissipando-se. Nas condições passadas e presentes da vida social humana, desenvolvimentos dessa espécie constituem uma das mais típicas e freqüentes situações em que os povos são impelidos para o uso da violência; são uma das situações que levam à guerra."

 

Referência: 
Elias, Norbert. Os Alemães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed. , 1997. (p. 317-321)

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